Princípios constitucionais versus vontade arrecadatória do Estado

Desde meados de dezembro de 2021, não foram poucas consultas junto ao nosso departamento jurídico sobre qual seria a data oficial e legal que os estados da federação poderiam cobrar o ICMS/Difal, relativo às vendas realizadas a consumidores final não contribuintes do ICMS.

As dúvidas surgiram devido ao fato que Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu em 24/2/2021 que as unidades da federação não poderiam cobrar diferencial de alíquota (Difal) de ICMS a partir de 1º de janeiro de 2022, caso o Congresso não editasse uma Lei Complementar sobre a questão ainda em 2021. A decisão ocorreu no julgamento conjunto da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.469 e do Recurso Extraordinário 128.019.

Pela decisão do Supremo, essa a cobrança do Difal (diferença de alíquota) seguiria intacta até o fim do ano 2021, já que para que a cobrança retornasse em 2022, decidiu o STF que seria necessário a regulamentação por lei complementar.

A lei em questão nasceu junto ao Projeto de Lei Complementar 32/2021, aprovado no Congresso Nacional no dia 20 de dezembro de 2021, em sessão extraordinária do Senado, a fim de suprir uma lacuna legislativa apontada em julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF).

Ocorre, porém, que só em 5 de janeiro de 2022 foi publicada a Lei Complementar nº 190/2022, alterando a Lei Kandir (Lei Complementar nº 87/1996) para incluir regras gerais sobre o Diferencial de Alíquota de ICMS (Difal), devido em operações interestaduais que destinem bens e serviços a consumidor final.

Em que pese os esforços empreendidos pelos estados para agilizar a tramitação do PLP 32/2021, como visto, a Lei Complementar para suprir a ausência de regras gerais sobre o Difal veio a ser publicada somente em 05 de janeiro de 2022, situação que atraiu, ao nosso ver, o respeito ao princípio da anterioridade anual.

Isto porque, o ICMS se submete simultaneamente aos princípios da anterioridade anual e nonagesimal (artigo 150, III, “b” e “c” da Constituição, respectivamente), os quais estabelecem que lei que implique nova cobrança ou majoração do imposto somente pode produzir efeitos no ano seguinte e após o decurso de 90 dias, tendo como referência a sua publicação.

A situação de ilegalidade prematura da cobrança se agrava quando voltamos as atenções ao princípio da anterioridade nonagesimal, ao passo que embora a LC 190/2022 tenha respeitado tal princípio, o Confaz, afim de outorgar segurança “ilegítima” aos estados, publicou, em 6/1/2022, o Convênio 236/2021, que revogou os dispositivos do Convênio 93/2015 e estabeleceu as diretrizes para o cálculo e recolhimento do Difal, seguindo o que foi instituído pela Lei Complementar 190/2022.

No entanto, determinou que sua aplicação dar-se-á a partir de 1º/01/22, contrariando o estabelecido na referida Lei Complementar, inclusive.

Alguns estados da Federação, firmados no Convênio 236/2021, acabaram editando lei estadual ainda no ano de 2021, a maioria dos estados, editaram e publicaram as leis entre o dia 21 a 31 de dezembro de 2021, ou seja, antes mesmo da própria edição da Lei Complementar nº190/22, que com isso, buscavam arrecadar antes mesmo da edição da LC, — situação vedada pela decisão do STF, eis que a Lei Federal era necessária para validar as novas leis que seriam editadas.

Outros estados que sequer editaram a leis estaduais, entendendo que sequer seria necessário nova lei, eis que com a alteração através do Convênio 236/2021, restou validada a cobrança, —situação diametralmente inversa ao que decidiu o Supremo. E ainda, alguns estados, somente respeitaram a anterioridade nonagesimal, entendendo que não precisam respeitar a anterioridade anual, conforme prevê o artigo 150 da Constituição Federal.

 Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(…)
III – cobrar tributos:
(…)
b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou;
c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b;

Diante de todo esse contexto e discussão jurídica, nosso escritório, contratado por algumas empresas que realizam vendas à todos os estados da Federação, no início de fevereiro de 2022, iniciou o ajuizamento de mandados de segurança nos estados, sendo até o momento proferidas dez decisões liminares acolhendo a tese de que a cobrança somente poderá ser realizada a partir de 1/1/2023, bem como, duas decisões contrárias, sendo uma delas de São Paulo, qual foi objeto de recurso de agravo de instrumento, e o TJ-SP, concedeu a tutela recursal para suspender o pagamento e cobrança do Difal, os demais estados da Federação, ainda pendem de decisão liminar.

A título de exemplo, vamos colacionar duas decisões favoráveis, que entenderam que a cobrança somente vale a partir de 1/1/2023, sendo do Estado de Roraima e do Distrito Federal:

MS 0802042-74.2022.8.23.0010/RR:
Assim, diante da existência de fundamento relevante, quanto à probabilidade do direito, e risco ao resultado útil do processo, no que concerne à efetividade do provimento judicial, caso seja ao final concedido na forma requerida na exordial, DEFIRO o pedido de concessão de liminar para suspender a exigibilidade de pagamento do Diferencial de Alíquota do ICMS, nos termos requeridos, suspendendo a exigibilidade do crédito tributário correspondente ao DIFAL exigido pelo Estado de Roraima nas operações que tenham como destinatário consumidor final não contribuinte do ICMS, realizadas no curso do ano-calendário de 2022, em relação à empresa impetrante. Intime-se a autoridade apontada coatora, para ciência e cumprimento, sob pena da imposição de multa coercitiva, sem prejuízo da adoção de outras medidas indutivas necessárias.

MS 0700197-19.2022.8.07.0018/DF:
Isto posto, DEFIRO A LIMINAR para suspender a exigibilidade dos valores relativos ao DIFAL decorrentes de operações de vendas de mercadorias realizadas pela impetrante a consumidores finais não contribuintes do ICMS, situados no DF, durante o exercício de 2.022, até segunda ordem deste juízo.

Vejamos agora duas decisões, onde os magistrados entendem que a cobrança pode ser imediata, inclusive, sem o respeito da anterioridade nonagesimal:

MS 1002422-97.2022.8.26.0053/SP:
A referida lei complementar, a exemplo da lei complementar 114/2002 que regulamentou a exigência do ICMS nas importações, não pode ser vista como instituidora da cobrança do DIFAL, mas como aquela que a regulamenta, para que seja instituída a cobrança pelas leis estaduais. Nesse contexto, é de se destacar que a lei paulista 11.001/2001, que instituiu a incidência do ICMS nas importações, era anterior à lei complementar 114/2002, regulamentadora da matéria, e foi julgada como válida pelo STF no RE 1.221.330/SP (Tema 1094 de Repercussão Geral), destacando-se apenas a inexistência de eficácia enquanto existente a lacuna derivada da ausência da lei complementar. Mutatis Mutandi, ao menos a partir da cognição sumária, parece que a norma constante do § 2º do art. 7º da Lei Paulista 6.374/86, acrescentada pela Lei 17.470/2021, é, a partir do mesmo raciocínio, plenamente válida. De outra parte, como esta lei é de dezembro de 2021 e teve a sua entrada em vigor prevista para noventa dias após a sua publicação, não é possível ver afronta à anterioridade anual ou nonagesimal. Por essas razões, INDEFIRO O PLEITO LIMINAR.

MS 0000212-22.2022.8.16.0004/PR:
Compreende-se que o pedido liminar não comporta acolhimento. Não se olvida o disposto no art. 150, III, alíneas b e c, da Constituição da República e nem o decidido pelo Supremo Tribunal Federal – Tema n.º 1093 –, no entanto a cobrança de DIFAL não se trata de criação de imposto novo ou majoração de tributo existente, já que a Lei Complementar n.º 190/2022, ao alterar a Lei Kandir, apenas disciplinou a distribuição dos recursos apurados no ICMS quando há movimentação de mercadorias entre dois Estados da Federação distintos e que cobram alíquotas distintas de ICMS. Deste modo, não vislumbro violação ao princípio da anterioridade, pois não antevejo a criação de novo imposto ou a majoração de tributo existente. (…) Ante o exposto, indefiro o pedido liminar.

Por certo, a palavra final, novamente ficará ao Supremo Tribunal Federal, qual traçará se os limites constitucionais foram respeitados pelos Estados ou não quando da edição das leis estaduais.

Dr. Juarez Casagrande

Dr. Juarez Casagrande

ADVOGADO

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